Símbolo do engenho russo e da resistência armada em países pobres, a Kalashnikov hoje empresta seu nome a outro símbolo da Rússia, a vodca Kalashnikov

por Danilo Matoso
“A arma que mudou a guerra”. O subtítulo do livro do jornalista Larry Kahaner dedicado ao AK-47 sintetiza o impacto que o fuzil de assalto russo teve no mundo ao longo da segunda metade do século 20 e até hoje. Mais que uma arma de fogo, a Kalashnikov se tornou um ícone da resistência popular contra os ataques armados do imperialismo. Em 1998, a centenária destilaria Glazov decidiu fundir este símbolo a outro elemento típico da cultura russa, criando a vodka Kalashnikov – com que O Partisano presenteia seus apoiadores no Catarse.
O fuzil de assalto
Os Sturmgewehre, ou fuzis de assalto, foram criados pelos alemães durante a Segunda Guerra, combinando o alcance, a repetição e a precisão do fuzil automático, da submetralhadora e da carabina numa só peça. O StG 44 esteve na base do projeto do engenheiro russo Mikhail Kalashnikov (1919-2013) a vencer um concurso do Exército Vermelho em 1946 para um fuzil de assalto soviético. A ideia foi aperfeiçoada por meio de protótipos e colocada em produção no ano seguinte, com o nome de Avtomat Kalashnikova – 47, ou simplesmente AK-47. Em 1949, seria adotada como arma oficial das Forças Armadas, difundindo-se por todos os demais Estados alinhados politicamente à União Soviética.
Totalmente automática e confiável, a AK-47 possui um sistema de gás de curso longo, folgas generosas entre as partes móveis e um carregador cônico que garantem o seu funcionamento mesmo em condições adversas próprias do combate: pode cair na lama, passar meses imersa em depósitos de grãos, e ainda assim seguir funcionando sem panes. Seu desenho simples permite sua fabricação em qualquer oficina mecânica que disponha de um torno, por um custo relativamente muito baixo – diz-se que é trocada por um frango em alguns países.
Essa combinação de baixo custo e versatilidade tornou a AK-47 extremamente popular nas décadas seguintes. Segundo levantamento do Banco Mundial feito em 2004, um quarto dos 500 milhões de armas de fogo existentes no mundo são baseadas no desenho da Kalashnikov – quase 100 milhões produzidos industrialmente e o restante de modo semi-artesanal.
O símbolo
Como armas de fogo emblemáticas, talvez as Kalashnikov só sejam acompanhadas de longe pelas baionetas desenvolvidas na Europa no século 17 ou pelos revólveres Colt norte-americanos no século 19. O fuzil de assalto foi usado na Guerra do Vietnã, nas guerras de independência de Moçambique, nas Guerras do Golfo, do Afeganistão e da Síria. A sua silhueta estampa os brasões de Burkina-Faso e do Timor Leste, aparecendo ainda na bandeira de Moçambique e de diversas forças de resistência como o Hezbollah, a Resistência Síria e as Forças Armadas Revolucionadas da Colômbia (FARC).
Tal onipresença inspirou e inspira as mais variadas manifestações culturais: histórias folclóricas, canções e poesia. A canção Kalasnikov, composta por Goran Bregović, consta na trilha sonora do filme Underground, de Emir Kusturica (1995). Em 2009, o músico francês Martin Angor cantaria a sua amada, “bela como uma AK-47 nas mãos de rebeldes”, e o escritor Alejandro Páez Varela lançaria o livro Corazón de Kalashnikov. Na última semana, o DJ carioca Kitran Jay lançou a música Kalashnikov, acompanhado da hashtag #VidasNegrasImportam.
Mikhail Kalashnikov lutou pelo Exército Vermelho como sargento na divisão de tanques, durante a segunda guerra. Ferido em combate, passou seis meses hospitalizado em 1941, tendo sido designado em seguida para o Centro de Desenvolvimento Científico de Armas Leves, onde projetaria o fuzil de assalto. Receberia o título de Doutor em Ciências Técnicas em 1971, ano em que também seria promovido a coronel. Em 1994, aos 75 anos, foi reformado como tenente-general do Exército Soviético e russo. Celebrado em seu país, ganharia o Museu Kalashnikov na cidade de Izhevsk, Udmurtia – onde o militar viveu até sua morte em 2013 –, e uma estátua em sua homenagem seria erguida em 2017 em Moscou.
O homem, a vodka
Mas nem só de honrarias vive o homem. Com o fim da União Soviética e sua aposentadoria, o inventor do fuzil não receberia qualquer direito autoral por sua fabricação. Decidiu então ceder o direito de uso de seu nome em 1998 à tradicional empresa Glazov, sediada na cidade homônima próxima a Izhevsk, fabricante da vodka Zolotaya Korona Rossii [Coroa de Ouro da Rússia]. O próprio Mikhail aprovaria a nova receita da bebida, destinada à exportação em garrafas desenhadas tanto na forma de fuzil (vendidas em estojos de madeira) quanto na forma de seu projétil de 7,61x39mm. Fabricada com as águas dos Montes Urais, a vodka Kalashnikov ganharia vários prêmios por sua qualidade, sendo produzida e vendida em diversas versões, como a “Ak-47”, a “Premium” ou a “Premium 100”. Somente em 2004, porém, a bebida ganharia o mercado europeu – não sem certa resistência dos gigantes da indústria ocidental, que acusavam a vodka de promover a rebelião por seu nome. Afinal, a shot of Kalashnikov ainda causava apreensão – quer como disparo, quer como dose.

A fabricação da vodka é feita com fermentação e destilação em duas camadas, a partir de ingredientes tão díspares quanto o trigo, a cevada, a batata ou o centeio – de acordo com a região de fabricação. A maioria das vodkas do mundo, inclusive Brasil, é feita localmente por mistura com água e outros ingredientes a partir de um “destilado neutro” ou “álcool base” importado da Rússia ou da Polônia – onde a bebida surgiu no século 8. O resultado é evidentemente inferior ao das vodkas totalmente produzidas e engarrafadas naquela região, como é o caso da Kalashnikov: no mínimo a oportunidade de experimentar uma boa vodka de raiz. Pelo fetiche, pelo sabor, pela iconoclastia ou por simples curiosidade, talvez valha a pena ter uma Kalashnikov em casa nesses tempos sombrios.