Funk, suor e a unificação do Brasil

17 anos depois, o documentário “Sou Feia, mas Tô na Moda” segue indispensável para derrubar o preconceito da esquerda acadêmica (e branca) contra o gênero

Imagem: reprodução
por Henrique Nunes

Antes de tudo, é preciso dizer: eu também já militei contra o funk nacional. Minha relação com a música, forjada pelo rock pesado ainda na infância, tornou-se por longos e longos anos a legitimação do viralatismo cultural – se era gringo era bom; se era nacional, era ruim.

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Óbvio que tal premissa não se sustentou por muito tempo. A partir do momento em que passei a ouvir, por influência de amigos mais velhos, gente de peso do nosso repertório (a descoberta do disco Tim Maia Racional foi uma hecatombe) o jogo virou de lado: desde então, a defesa do que “era nosso” tornou-se quase que uma obsessão a ponto de me considerar um exímio garimpeiro sonoro – eu era hipster e não sabia.

Pois bem.  A vida é mesmo um disco de vinil riscado pela vida. E, quanto mais eu sabia de música, mais idiota eu me tornava. Meu argumento, idêntico ao usado pelos que hoje tento persuadir, era de que o conhecimento supostamente aumentaria o nível de exigência – como se, num paralelo com a gastronomia, gostar de foie gras te fizesse odiar feijoada.

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O tom elitista do meu comportamento, é bom que se diga, eximia o samba de rotulações de classe. Nascido nos fundões do país (São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia) o gênero é por vezes tão complexo que ficou fácil defendê-lo como “foie gras”. O pagode, não. Este era inferior, subproduto, desqualificado, menor.

Ah, mas e o funk? Oras, meus compas, o funk nem sequer “existia” para mim. “O único funk que reconheço é o de James Brown”, dizia, com o pedantismo dos que querem decidir o que é melhor ou pior para o povo.  Isso numa época em que o gênero ainda engatinhava e era esnobado também pelas grandes produtoras.

A história só começou a mudar quando assisti ao documentário “Sou Feia, Mas tô na Moda”, dirigido por Denise Garcia e lançado em 2005 – ano em que terminava a faculdade de Jornalismo. Foi a partir dele que comecei a entender que, para além da questão musical, o funk começava a revolucionar as periferias do país dando legitimidade a gente invisível, incluindo mulheres em seu repertório e começando a transformar a cultura popular do país.

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Nunca mais esqueci a resposta da Valesca Popopuza sobre o teor das letras. “Não é só o funk que fala sobre sexo. No carnaval a mulher bota o peito de fora. No funk ninguém vai em cima do palco e bota o peito de fora. No forró tem duplo sentido. O hip hop também tem duplo sentido. Cada um tem o seu ritmo”, disparou, deixando claro o tamanho da perseguição que o gênero sofria desde a sua origem.

O filme, de pouco menos de uma hora, também mostra como o funk por pouco não dominou o mundo a partir do trabalho feito pelo DJ Marlboro – que fez jornais como o Le Monde destacarem o gênero em suas páginas.

O documentário, cuja premissa é mostrar a invasão das mulheres nos bailes, antecipa a explosão de grandes nomes do gênero que hoje estão completamente inseridos no mainstream.  É fundamental assisti-lo para entender, ainda, como o funk alterou toda uma cadeia de produção musical nas quebradas do país – criando oportunidades de emprego e tirando muita gente da miséria.

Desde então, tornei-me um defensor do funk, mesmo que não seja um consumidor voraz do gênero – afinal, eu não preciso ouvir para aceitá-lo, não é mesmo? Consigo, inclusive, derrubar qualquer tese sobre sexismo, machismo e culto à violência com não mais que um punhado de argumentos.  Eles cantam o que vivem e nós, brancos, classe média, de esquerda, não deveríamos sequer levantar essas questões.

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O passo seguinte foi ter a experiência de ver e ouvir, numa festa em que o funk era protagonista, a reação do público. Foi avassalador. Há uma catarse maior até mesmo do que a presente nas rodas de samba. Há um senso de coletividade que transcende qualquer evento de Carnaval. Há mais respeito do que em muitas festinhas progressistas de Pinheiros. Há, por fim, o retrato de um Brasil que, esperamos todos, pode muito bem voltar a viver em harmonia. E feliz.

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