Fidel e a Religião

“Começar a admitir que espiritualmente são iguais pobres e ricos, significa começar a reconhecer, a todos, os mesmos direitos dos demais”

Imagem: AP News/Ramon Espinosa
por Emílio Pio

Em 1985, o Frade Dominicano Frei Betto travou uma conversa de 23 horas com o líder revolucionário Fidel Castro para discutir o tema religião. A partir dessa conversa surgiu o livro Fidel e a Religião, uma obra com quase 300 páginas. Pela primeira vez um chefe de Estado de um país socialista falava sobre o tema. 

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A obra do jornalista e Frade Dominicano Frei Betto é extensa e fundamental para compreender parte dos conflitos latinoamericanos, e a luta do povo contra o neoliberalismo. Uma narrativa na contramão do discurso midiático hegemônico e neoliberal. Um olhar para compreender a luta latinoamericana em busca de libertação. 

Antes de conhecer Fidel, a proposta de Frei Betto era construir um livro com o nome A Fé no socialismo. A ideia era viajar por países socialistas e entrar em contato com comunidades cristãs sob um regime materialista e ateu. Frei Betto não conseguiu realizar a obra por se tratar de projeto caro. Após a vitória da Revolução Sandinista, Frei Betto foi convidado a participar de encontros e treinamentos a convite das pastorais que atuam na Nicarágua. Essas viagens aproximaram o Frei dos sacerdotes do regime Popular da Nicarágua. Num desses encontros, o padre Miguel D’Escoto, ministro de Relações Exteriores, levou Frei Betto à casa de Sergio Ramírez, que na época era vice-presidente da República. Lá Frei Betto conversou pela primeira vez com Fidel Castro. 

Fidel e a Religião começa com um diálogo que busca recuperar a memória de Fidel sobre a sua infância, trazendo a tona elementos religiosos ali presentes. Fidel viveu seus primeiros anos no campo, na zona rural, lá já observava os credos de seu povo, conhecia seus Santos. Ele recorda que lá todos tinham um Santo, e o nome de cada um coincidia com o dia do Santo, no caso de Fidel, São Fidélis.

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Durante a conversa eles lembram outros significados sobre o nome Fidel, como aquele que tem fé ou fidelidade. Ao falar sobre o próprio nome, Fidel começa a descrever a sua experiência e visão sobre a fé, ele afirma estar completamente de acordo com seu nome, seja pela fidelidade, seja pela fé. “Pois uns têm fé religiosa e outros de tipo diferente. Tenho sido um homem de fé, de confiança, de otimismo.” 

Ainda descrevendo a sua relação com a fé, Fidel guarda a lembrança de ver a sua mãe rezar o rosário, a ave-maria, o pai-nosso. Em sua casa havia muitas imagens da Virgem da Caridade, a padroeira de Cuba; de São José, de Cristo, e de outras virgens. Havia um sentimento religioso forte na mãe de Fidel. O próprio Batismo era um ritual muito importante para o povo cubano. “O Batismo era uma instituição popular”, afirma Fidel. 

Para Fidel Castro a fé religiosa e a fé política devem ter como base o raciocínio, já que o pensamento e o sentimento são coisas inseparáveis. Ele destaca também a forte tendência religiosa apoiada na ideia de prêmio e castigo, na tentativa de incutir a fé de forma dogmática. 

Ele observa a ideia de prêmio como algo complexo e abstrato, algo baseado na contemplação, a ideia de um estado de felicidade dentro do quadro da eternidade, sendo algo difícil de se assimilar, compreender. Já o Castigo era algo mais compreensível, um garoto pode compreender facilmente a ideia de castigo, inferno, a dor, o sofrimento e os fogos eternos. Ele destaca a ênfase no castigo. 

“Sem prêmio e sem castigo. Porque, a meu ver é não é inteiramente generoso, nem totalmente digno, nem merece elogio, admiração ou estima o que é feito por medo ao castigo ou em busca de um prêmio. Mesmo em nossa vida revolucionária, quando tivemos que designar homens para tarefas muito difíceis e para provas muito duras, e que foram capazes de suportar com enorme desinteresse e altruísmo, o mais admirável é que não estavam motivados pela ideia de prêmio ou castigo. A Igreja viveu essas provas durante muitos séculos, viveu o martírio e soube enfrentá-lo.”

Fidel declara também os fatores fundamentais numa revolução. “Nossos países são bem pobres para dar ao homem riquezas materiais, mas não para lhe dar um sentido de igualdade, lhe dar um sentido de dignidade humana.”. Eis que são pontos onde a atuação de revolucionários e mártires se cruzam pelo altruísmo e desinteresse. 

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Relembrando os tempos de aluno de colégios católicos Fidel fala também sobre sua visão sobre a religião Católica, associando-a ao comunismo.

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“Aqui, entre nós, digo-lhes que há um grande ponto de contato entre os objetivos que o cristianismo preconiza e o objetivo que nós, comunistas, buscamos; entre a pregação cristã da humildade, da austeridade, do espírito do sacrifício, do amor ao próximo e tudo que pode chamar conteúdo da vida e da conduta de um revolucionário. Afinal, o que estamos pregando ao povo? Que mate? Que roube? Que seja egoísta? Que explore aos demais? É exatamente ao contrário. Ainda que por motivações diferentes, as atitudes de conduta que numa época em que a política entrou num terreno quase religioso em relação ao homem e à sua conduta. Acredito que talvez tenhamos chegado a uma época em que a religião pode entrar no terreno político em relação ao homem e às suas necessidades materiais. (…) Há dez mil vezes mais coincidências do cristianismo com o comunismo do que pode haver com o capitalismo…”

A Teologia da Libertação

De acordo com Frei Betto, a Teologia da Libertação pode ser definida como o reencontro do cristianismo com as suas raízes, com a sua história atrativa e heroica. Sendo um importante acontecimento da América Latina. Para Fidel, o forte combate do império, seu governo e seus teóricos, contra a Teologia da Libertação, é uma ação para manter as desigualdades. 

“Mas começar a admitir que espiritualmente são iguais pobres e ricos, os negros e os brancos, os camponeses sem terra e os latifundiários, significa começar a reconhecer, a todos esses seres humanos que têm alma e corpo iguais aos brancos, iguais aos ricos, os mesmos direitos dos demais. Pois bem, em suma é assim que entendo a luta que vocês estão assumindo e, portanto, não é estranho que o império e seu governo, seus teóricos e seus porta-vozes comecem a travar uma acirrada luta contra a Teologia da Libertação, denunciado-a como subversiva, porque querem manter o princípio de que sequer temos alma. Porque se temos alma, e também corpo, teriam de admitir o nosso direito à vida, à alimentação, à preservação da saúde, à educação, a ter moradia, a dispor de emprego e a levar a vida com dignidade.”

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