Anarquia no país da rainha

Os primeiros punks ingleses impulsionaram uma onda sem precedentes de bandas e publicações independentes pelo mundo, a partir daí, tudo o que um jovem precisava para começar a falar era vontade

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por Ivan Conterno

O texto abaixo é a terceira parte da série “Grito de ódio: uma breve história do punk“.

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Numa análise superficial, é comum conceber o punk inglês como um subproduto de apelo mais comercial do punk novaiorquino, esse sim excepcional. Isso só é verdadeiro se desconsiderarmos que foi só na Inglaterra que o movimento deixou de ficar restrito a um nicho, respondendo às tensões mais sentidas pela juventude da época. Embora a blank generation tenha seu mérito, os punks ingleses foram pioneiros em vários aspectos. Em Nova Iorque, o idealismo hippie foi respondido apenas num nível reacionário: com o retorno a um rock’n’roll primitivo, embora renovado e mais agressivo, e com o desprezo a qualquer tipo de reflexão sobre o mundo.

Os punks na Inglaterra foram mais longe: materializaram os conceitos situacionistas e outras ideais de vanguarda na música, denunciaram os culpados pelas mazelas da civilização – com ódio e violência, e não mais com paz e amor – e mesclaram o rock’n’roll simplificado com elementos da música negra e caribenha, como o reggae, o soul, o jazz e o ska. Foram os ingleses essencialmente que transferiram o descontentamento social e político dos anos 70 para  música, introduzindo novos ritmos, novas danças e novas formas de se vestir na cultura mundial.

Uma crise inaudita

A civilização ocidental estava em crise, perdendo suas colônias na Ásia e na África, e, como de costume, as consequências do declínio da economia eram todas despejadas sobre os trabalhadores. No Reino Unido, o governo conservador que assumiu em 1970 prometia destruir as garantias sociais e investir os recursos restantes na iniciativa privada. Como consequência, o estado de bem-estar social britânico, tão propagandeado e que tanto favorecia a população local, sumiu do dia para a noite logo no início dos anos 70. O conjunto dessas medidas levaram o país a uma enorme inflação e a uma crise habitacional nunca antes vista.

Como resposta, vários jovens anarquistas, trotskistas e desempregados começaram a ocupar prédios abandonados para morar. Era um levante contra a cobrança de aluguel em geral. Diferente das famílias que já vinham fazendo isso nos anos 60, esses jovens defendiam que as ocupações eram um ato político revolucionário, além de ser uma boa maneira de economizar dinheiro. No início de 1973, o jovem Joe Strummer juntou-se aos militantes da causa da moradia, desafiando a lei e ajudando a arrombar as centenas de casas abandonadas. “Havia hordas de gente que não conseguiam pagar aluguel. A única coisa que tinha pra se fazer era arrombar um dos edifícios abandonados e ocupá-lo”, explicou. Vivendo de tocar ukulele nas ruas e no metrô, Joe resolveu se juntar aos colegas da ocupação e formou uma banda chamada 101ers – 101 era o endereço da casa ocupada.

Os 101ers tocavam o que chamavam de pub rock, que era a reação ao rock de estádio na Inglaterra. As bandas se apresentavam em pequenos bares e eram fortemente influenciadas pelo blues e outros ritmos dos negros norte-americanos. Os grupos de pub rock investiam muito mais nas apresentações ao vivo do que nos estúdios e, geralmente, não gravavam material nenhum. Poucas dessas bandas se tornaram viáveis comercialmente, como o grupo Dr. Fellgood, que alcançou o primeiro lugar nas paradas com um álbum ao vivo de 1976.

A loja Sex

A juventude, na ressaca do rock’n’roll britânico dos anos 60, divertia-se com o soul e o reggae, que tinha forte penetração na classe trabalhadora britânica. Diferente da cena de Nova Iorque, que o crítico musical Lester Bangs chegou a chamar de supremacista, em Londres havia uma convivência entre os jovens brancos dos subúrbios com os imigrantes jamaicanos. Seguindo esse espírito, o proprietário de uma pequena loja que vendia suas camisetas estampadas à mão, Bernie Rhodes, passava o dia tocando sua coleção de discos de reggae para o público. Em 1974, ele começou a trabalhar com um novo conceito de roupas para um velho amigo, Malcolm McLaren, e sua mulher Vivienne Westwood, que tinham uma boutique chamada Let It Rock,.

Paralelamente a isso, em 1972, ao terminarem a escola, Wally Nightingale, Paul Cook e Steve Jones decidiram montar uma banda, The Strand. Como não tinham dinheiro, roubavam os instrumentos e os equipamentos de alta qualidade em shows de músicos que admiravam, como Bob Marley, Rod Stewart e David Bowie. No final de 1974, os três chamaram Glen Matlock para tocar baixo, um funcionário da loja de Vivienne e Malcolm, que eles frequentavam.

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Em pé, da direita para a esquerda: Steve Jones, Paul Cook. Deitado: Wally Nightingale. Em 1974. Imagem: arquivo pessoal de Wally

Nesse mesmo ano, a boutique de Vivienne e Malcolm mudou o nome para Sex e virou um ponto de encontro de adolescentes. Por esse motivo, Malcolm foi para Nova Iorque buscar roupas fetichistas que dessem uma nova cara para a loja e acabou se envolvendo com os New York Dolls. Como sabemos, o seu trabalho com a banda não foi bem sucedido e logo ele voltou para Londres, mas não antes de ficar deslumbrado com a cena de punk rock que já surgia nos Estados Unidos. Sua intenção era tentar trazer um daqueles rapazes punks – Sylvain Sylvain dos New York Dolls ou Richard Hell – para lançar a nova linha de roupas com slogans situacionistas. Para isso, precisaria também de uma banda de apoio na Inglaterra.

Da esquerda para a direita: Steve Jones, não se sabe, Alan Jones, Chrissie Hynde, Pamela Rooke e Vivienne Westwood na loja Sex. Imagem: David Dagley/Rex

Nesse meio tempo, Bernie Rhodes resolveu gerenciar a banda de Steve, Wally, Paul e Glen, que tinham então passado a se chamar os Swankers, enquanto Malcolm não voltava. No entanto, Steve ficou sabendo que Malcolm havia empresariado os New York Dolls e, quando ele retornou para Londres, ficou insistindo para que ele fosse o empresário da sua banda. Em meados de 1975, Malcolm aceitou, com a condição de que chutassem Wally da banda e de que Steve desenvolvesse suas habilidades nas guitarras que roubava.

Malcolm McLaren tinha desistido da ideia de trazer um punk de Nova Iorque e resolveu procurar um vocalista para a banda ali mesmo. Quando Bernie Rhodes viu um moleque vestindo uma camiseta com a frase “eu odeio Pink Floyd”, o levou até Malcolm, Steve e Paul. O moleque, John Lydon, tinha 19 anos, havia sido expulso da casa da família e morava numa ocupação com seu amigo John Simon Ritchie, ironicamente apelidado como Sid por se parecer com o guitarrista do Pink Floyd. Lydon recebeu o apelido de Johnny Rotten (Joãozinho Podre) por causa dos dentes toscos e se tornou o vocalista da banda, que mudou o nome novamente, dessa vez para Sex Pistols. Bernie Rhodes foi afastado da direção da banda, mas continuou trabalhando com Malcolm.

Mas, como dissemos, as condições de vida estavam cada vez mais terríveis. Em 1975, a inflação e o desemprego galopantes quase levaram o governo trabalhista a um colapso. A crise econômica era tão avassaladora que o ministro do trabalho James Callaghan chegou a dizer: “se eu fosse jovem, eu fugiria do país!” Além do amigo de Johnny Rotten, Sid, outros jovens perdidos que frequentavam a loja e que moravam nas ocupações da região de Bromley, no sul de Londres, começaram a acompanhar a banda. Entre eles estavam pessoas que ficariam famosas nos anos seguintes como Siouxsie Sioux, Viv Albertine, Mick Jones e Tony James. Inspirados pela atitude dos Sex Pistols, todos eles também estavam formando suas próprias bandas.

Os Sex Pistols tocaram pela primeira vez em 12 de fevereiro de 1976, abrindo para uma banda de pub rock, Eddie & the Hot Rods, e terminaram a noite quebrando o equipamento da banda principal. Dois meses depois, abriram o show dos 101ers e impressionaram o vocalista da banda principal. “Era como se eles estivessem um milhão de anos à frente”, disse Joe Strummer. Para ele, os 101ers não iriam a lugar nenhum tocando pub rock, embora os outros integrantes da banda tenham odiado o punk rock dos Sex Pistols.

Alguns dias depois, após a segunda noite das duas bandas tocando juntas, Joe foi chamado por Bernie Rhodes para conversar com Mick Jones, que também tinha uma banda. Bernie deu 48 horas para decidir se ele queria se juntar à banda que seria a “rival dos Pistols”. Joe aceitou deixar o 101ers e se juntar a Mick em 24 horas. A banda foi batizada de Clash por Paul Simonon, que entrou como baixista embora não soubesse tocar. No dia 4 de julho daquele ano, foi Joe Strummer que abriu para os Sex Pistols.

Horas depois da estreia do Clash, os punks de Londres foram ver a primeira apresentação dos Ramones na Inglaterra. A banda abriu para a banda de garage rock californiana Flamin’ Groovies. Os Stranglers, que depois seriam associados à cena punk inglesa, tocaram na mesma ocasião, embora ainda não fossem identificados com o punk rock. Marc Bolan, da banda de glam rock T. Rex, que influenciaria muitas bandas inglesas do punk rock, também estava lá e foi convidado para subir no palco. Na noite seguinte, os músicos dos Sex Pistols e do Clash conheceram os Ramones, que ofereceram cerveja cheias de gotas de mijo para os jovens londrinos. Depois disso, os Ramones fizeram uma pequena turnê pelo país, que ajudou a consolidar localmente o novo estilo musical.

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Bernie, agora empresariando o Clash, insistiu para que os garotos ensaiassem intensamente durante um mês inteiro antes de se apresentarem de novo. “Éramos quase stalinistas já que tínhamos que abandonar todos os nossos amigos, ou tudo que nós conhecíamos, ou todos os jeitos que nós tocamos antes”, dizia Joe Strummer. Diferente dos Sex Pistols, o Clash tratava a política com acontecimentos reais e começava a misturar reggae ao punk rock.

Inspirado na boutique de Malcolm e Vivienne, outra loja, a Acme Attractions, decidiu se aventurar na nova moda. O gerente, Don Letts, colocava discos de dub e de reggae o dia todo enquanto vendia as roupas e enrolava cigarros de maconha no balcão. Com uma multidão cada vez maior de clientes, os donos abririam também, no final daquele ano, uma casa de shows chamada Roxy, voltada para o público punk.

Don Letts na Acme Attractions. Imagem: reprodução

A repercussão

Depois de ler uma crítica na revista NME sobre a primeira apresentação dos Sex Pistols, dois estudantes da Universidade de Bolton, Pete Shelley e Howard Devoto, viajaram para Londres para presenciarem a novidade. Inspirados pela energia e pela cena que conheceram, fundaram os Buzzcocks e chamaram os Sex Pistols para tocar em Manchester em junho de 1976. Infelizmente os Buzzcocks não tocaram nessa ocasião porque ainda não tinham formado a banda completa a tempo, mas estrearam na segunda ida dos Sex Pistols no mês seguinte.

Também por incentivo de McLaren, a jovem Chrissie Hynde, que trabalhava na loja Sex, se juntou a Captain Sensible, Rat Scabies e Brian James, que já tinha tocado com Mick Jones e Tony James, para formar o Damned. Como decidiram ter um vocal masculino ao lado do de Chrissie, convidaram Sid e Dave Vanian para fazer o teste para cantarem. Apenas Dave, um cara que se vestia de vampiro, apareceu e foi aceito. O conceito do grupo logo mudou e Chrissie Hynde foi dispensada. A banda tocou pela primeira vez em 6 de julho de 1976, abrindo para os Sex Pistols.

Vic Godard, um ávido ouvinte de soul music, se juntou a três fãs dos Sex Pistols e formou o Subway Sect por sugestão de Malcolm McLaren, que queria mais bandas punks para um festival que organizaria em setembro. A banda fez a estreia no festival e também foi contratada pelo empresário do Clash, Bernie Rhodes. No mesmo dia tocaram os Sex Pistols e o Clash. Quando soube que uma das bandas programadas para tocar no festival tinha desistido no último minuto, Siouxsie sugeriu que ela e seus amigos tocassem no lugar, incluindo Sid na bateria. A apresentação se resumiu a uma improvisação de 20 minutos da oração do Pai Nosso.

O festival continuou no dia seguinte, com o Damned, os Buzzcocks, os Vibrators e uma banda francesa, os Stinky Toys. Os Vibrators eram uma banda recém formada que nem havia ensaiado ainda. Eles foram como banda de apoio de Chris Spedding, músico de longa data que estava produzindo algumas gravações dos Sex Pistols. Os Vibrators chegaram a gravar algumas faixas como músicos de apoio de Chris no programa de rádio de John Peel no final daquele ano. A música “Pogo Dancing” batizaria a primeira dança punk da história, que consistia apenas em pular desgovernadamente. A maioria dos punks creditavam ao jovem Sid essa invenção.

Enquanto tudo isso acontecia, algumas bandas nova-iorquinas tentavam viajar para a Inglaterra para acompanhar o movimento, que se tornava cada vez mais explosivo. Em outubro, Patti Smith foi para Londres logo após lançar o seu álbum Horses. Na noite seguinte à sua apresentação, a cantora foi ver os Sex Pistols. Johnny Rotten abriu o show dizendo: “alguém foi ver a hippie sacudindo os pandeiros ontem? Horses, horsesHorseshit!” (“Cavalos, cavalos, merda de cavalo!”).

No entanto, Patti influenciou mais mulheres na Inglaterra do que nos próprios Estados Unidos. Palmolive, uma garota que havia acabado de começar a tocar bateria, assistiu ao show da cantora nova-iorquina e decidiu montar uma banda punk só de mulheres. Na mesma noite conheceu Ari Up, uma garota de 14 anos que estava xingando todo mundo, e a chamou para cantar. As duas se juntaram a mais duas outras mulheres e formaram as Slits, que passaram a ser gerenciadas por Don Letts. Mais tarde, Viv Albertine, a namorada de Mick Jones do Clash, se juntou ao grupo, substituindo a primeira guitarrista.

As bandas mulheres também estavam participando ativamente da cena. Uma jovem filha de pai somali conhecida como Poly Styrene, que tinha acabado de gravar um pequeno disco reggae, e Lora Logic, uma saxofonista de 15 anos, se juntaram a três marmanjos para fundar o X-Ray Spex no final daquele ano. A banda se diferenciava das demais pela voz potente de Poly e por contar com o instrumento de sopro.

Em 22 de outubro, uma pequena gravadora chamada Stiff Records lançou “New Rose”, o primeiro single do Damned, que se tornou o primeiro disco punk da Inglaterra. Cinco semanas depois, a EMI, gravadora dos Beatles, lançou o primeiro single dos Sex Pistols, “Anarchy in the UK”. Embora “anarquia” estivesse na música só para rimar, isso definia a juventude daquela época. Era o que os adolescentes sem perspectiva de futuro queriam ouvir há muito tempo, mas que ninguém antes teve coragem de cantar.

No final de 1976, Tony James entrou para o Chelsea, uma nova banda administrada pelos donos da Acme Attractions. Além dele, o grupo já contava com Billy Idol e outros dois punks. Depois de algumas semanas, Tony e Billy abandonaram a banda para formar o Generation X. A banda estreou na recém inaugurada Roxy. Como não existiam discos de punk rock, Don Letts colocava seus discos jamaicanos para tocar entre uma banda e outra, o que foi uma tremenda influência para a cena local.

O movimento crescia vertiginosamente e chegou às TVs. No dia 1º de dezembro de 1976, os Sex Pistols e os punks do Bromley apareceram em horário nobre falando todo tipo de palavrão proibido na frente das famílias britânicas. Sid, que se tornaria Sid Vicious, e Chrissie Hynde, que dois anos depois lideraria os Pretenders, ficaram sem banda até então. No entanto, o ano terminaria com uma enxurrada de grupos sendo formados, o que desencadearia o famigerado ano de 1977, tido como o grande ano da explosão punk pelo mundo.

Não era apenas na NME e na TV que as pessoas tomavam contato com a cena. Em julho, Mark Perry lançou uma publicação independente chamada Sniffin’ Glue (nome inspirado na música dos Ramones), que inaugurou uma nova forma de produzir zines (pequenas revistas independentes). As edições eram feitas a mão, com canetinhas e fotos recortadas, e sem nenhuma revisão gramatical. Steve Micalef, que colaborava com Mark, dizia que a revista Punk de Nova Iorque não tinha utilidade nenhuma, já que o periódico punk inglês, por sua vez, relacionava o movimento musical ao desemprego, às precárias moradias ocupadas e aos protestos. Para eles, a cena tinha começado na Inglaterra porque o país estava fodido, enquanto os punks americanos estavam só se divertindo. Em poucos meses, a Snifin’ Glue foi de uma tiragem de 50 cópias para 15 mil.

Os primeiros punks ingleses impulsionaram uma onda sem precedentes de bandas e publicações independentes pelo mundo. A partir dessa proposta, tudo o que um jovem punk precisava para começar a falar era vontade. Os punks ingleses enfrentavam a cúpula conservadora da sociedade, repercutindo, mesmo que de forma distorcida, as greves e os distúrbios que se espalhavam para todos os lados. Aos poucos, a figura dos empresários, das rádios e das gravadoras começaram a se tornar cada vez menos necessárias para lançar as próprias ideias no mundo e a política na cultura foi renascendo na juventude com um novo caráter. 

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