Protagonismo histórico nas mãos de gente comum e pobre contrasta com a inversão ideológica encontrada em diversas produções

por Alexandre Lessa da Silva
Apesar de não ser um especialista no gênero, casualmente descobri um animê que me chamou a atenção. Costumo sempre vasculhar pelo menos uma parte ou um capítulo de séries, filmes, desenhos animados e animês buscando compreender a ideologia e a teoria sociológica por trás da atual indústria cultural. Já estava desistindo de ver o primeiro capítulo de Akame ga Kill! quando, subitamente, ocorre um plot twist que prende minha atenção. A partir daí, assisti a todos os episódios e, então, resolvi escrever uma resenha crítica que fosse diferente do que normalmente se encontra em relação a animês.
Antes de entrar no cerne da questão, devo apresentar alguns pontos desse animê. Akame ga Kill! é um animê distribuído pela Netflix e baseado no mangá escrito por Takahiro e ilustrado por Tetsuya Tashiro. Seu título tem várias traduções possíveis: ‘Assassina do olho Vermelho’, ‘Assassina dos Olhos Vermelhos’, ‘Assassina Akame’, ‘Akame Mata’. O animê é uma ucronia com características medievais. Pelo fato de ser uma ucronia, é passado em um tempo histórico inexistente e hipotético, no interior de um império também imaginário. A trama é dada através dos caminhos trilhados pelo jovem Tatsumi, personagem que divide o protagonismo com Akame e que sai de sua vila no interior, junto com outros dois amigos, para tentar ganhar dinheiro como espadachim na capital do império, no intuito de ajudar sua miserável vila. Aqui, já aparece a primeira grande diferença em relação a outros exemplos do gênero: a dificuldade de saber quem é o personagem principal. Akame, por sua vez, é uma personagem sisuda e que não tem muitas falas. Vendida, com sua irmã quando criança, para ser treinada pelo império, acaba por se afastar dele e torna-se uma assassina opositora ao regime. Akame é uma personagem que não aparece tanto quanto Tatsumi, mas que tem um papel central na trama.
O enredo é composto a partir do conflito entre a Night Raid, grupo de guerrilheiros, chamados de assassinos no animê, e opositores ao regime do império. Nesse ponto, há uma dicotomia clássica entre o bem e o mal. Mas, diferente do que normalmente acontece, os lados dessa oposição não se tornam claros num primeiro momento. Quando essa dicotomia, finalmente, se torna clara, percebe-se que o império é um governo oligárquico, aparentemente aristocrático, corrupto e que vive da exploração do povo que, por sinal, sofre com os altos impostos que só privilegiam a elite do país. Governado por um jovem imperador manipulado por um perverso e corrupto primeiro-ministro, o império é uma estrutura de exploração em que os mais pobres não têm direitos ou o mínimo para viver com dignidade. Apesar de toda manipulação, o animê não tira a responsabilidade dos acontecimentos, também, das costas do imperador. Afinal, a omissão, em muitos casos, também pode ser uma forma de garantir a opressão.
Apesar da anacronia presente na obra, uma vez que a luta por uma revolução social e política ocorre num mundo com estrutura e estamentos praticamente medievais, a qualidade não é afetada por isso, como seria no caso de um livro de história. Através do personagem Tatsumi, o nascimento da consciência de classe –nesse caso, da classe oprimida – começa a ser percebido. A cada dia, Tatsumi se torna mais consciente que sua luta não é só dele, mas de toda uma classe oprimida. Aliás, a separação entre oprimidos e opressores nos sentidos social, econômico e político é um ponto presente em todos os episódios, o que gera uma tensão fundamental para prender a atenção dos espectadores.
Há um certo machismo presente em algumas falas ao longo da trama, mas que não ficam sem respostas por parte das guerrilheiras que estão no grupo. Além disso, as personagens femininas são extremamente fortes. A comandante da Night Raid, por exemplo, é uma mulher de cabelos grisalhos chamada Najenda e que foi general do exército imperial, Leone, uma mulher forte, valente e liberal e Akame, apesar de sua timidez, é a mais mortal de todos os membros da Night Raid. Pode ser dito que, no fundo, as mulheres são mais poderosas que os homens ao longo do animê, desde Akami até Esdeath, a mais poderosa general do império.
Há trechos que chamam atenção dentro da série em função de seu posicionamento político. Em um deles (isso é um spoiler), a comandante da Night Raid ordena que o grupo de assassinos vá encontrar um político e, logo a seguir, o grupo conclui que é para matá-lo. Entretanto, a comandante refuta tal conclusão e ainda afirma que é um político que defende os interesses dos mais pobres e que, portanto, luta contra a desigualdade. Indo além, a comandante assevera que a nova ordem pela qual os revolucionários lutam precisará de tais políticos para a reconstrução da sociedade, jogando por terra a ideia tão difundida atualmente, especialmente pela extrema-direita, de que toda política é má e que políticos não são necessários.
Em seu ‘Guia pervertido do cinema’ (1), Žižek aponta a presença de uma espécie de mito ideológico que está presente em boa parte das produções hollywoodianas: o herói, o protagonista, aquele que é visto como o salvador não pode ter uma origem comum, humilde, ele tem sempre uma origem nobre ou elevada na hierarquia econômica e social. Em Game of Thrones, por exemplo, o bastardo Jon Snow é, na verdade, o príncipe herdeiro. Em outro exemplo, Guerra nas estrelas, Luke Skywalker não é um jovem pobre de um planeta distante, como faz crer sua primeira aparição. É, realmente, o irmão gêmeo da princesa Leia, o que revela sua origem nobre. Além do campo do audiovisual, a própria religião, muitas vezes, apresenta essa orientação. Jesus não é um simples filho de carpinteiro, mas um descendente do rei Davi. Em Akame ga Kill!, isso não acontece. Tatsumi é um rapaz pobre de uma vila miserável e Akame uma jovem que foi vendida, o que coloca o protagonismo histórico nas mãos de gente comum e pobre, acabando com a inversão ideológica encontrada em diversas produções (2).
Akame ga Kill! traz toda fantasia, luta e carnificina comum a muitos animês. Entretanto, para quem conseguir ler nas entrelinhas, achará em sua narrativa um conjunto de ideias que não se coaduna com a ideologia dominante e que consegue romper com a estrutura encontrada na indústria cultural, buscando a diferença e, em muitos pontos, rompendo com a mesmice que a caracteriza (3).
NOTAS
(1) FIENNES, S., ŽIŽEK, S., ROSENBAUM, M., MISCH, G., WIESER, R., SCHNORR, R., SHEPHERD, E., & MYERS, T. (2006). The pervert’s guide to cinema.
(2) “Se, em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa câmara escura, este fenômeno resulta do seu processo histórico de vida, da mesma forma como a inversão dos objetos na retina resulta de seu processo de vida imediatamente físico.” MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas. Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. P. 94.
(3) “Culture today is infecting everything with sameness (a cultura hoje está infectando tudo com a semelhança)”. ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialectic of enlightenment: philosophical fragments. Trad. edmund Jephcott. Stanford: Stanford University Press,2002. P.94. Há uma versão brasileira publicada pela Zahar.