Quando se faz a crítica de um filme como esse, é inevitável ter que contar a história da tragédia. Alerta: contém spoiler

por Alexandre Lessa da Silva
[O texto a seguir contém spoiler.]
Joel Coen escolheu A Tragédia de Macbeth (disponível na Apple TV+) de William Shakespeare para dar vida a seu primeiro filme solo. Conhecido por uma série de trabalhos realizados com o irmão Ethan, tais como Fargo, Onde os Fracos não Têm Vez, Barton Fink: Delírios de Hollywood, O Grande Lebowski, Bravura Indômita, A Balada de Buster Scruggs, entre outros, Joel Coen já deixou sua marca na história do cinema, mas nunca com um filme que fosse só seu. A profundidade da experiência humana no meio da incerteza, dos erros e falhas que a marcam, a crueza de seus personagens diante de forças incomensuráveis presentes no interior de cada um de nós e da própria natureza, o humor negro pesado, mas refinado, a violência desmedida, mas, ao mesmo tempo, na medida certa, são características quase sempre presentes nas obras dos irmãos.
Esse convite à reflexão que constitui cada filme faz com que o espectador conhecedor de filosofia faça imediatamente um link com ela, afinal, como não pensar no Dasein heideggeriano, “o ser aí”, esse ser no mundo, essa “presença” que caracteriza cada ser humano durante sua angustiante vida? Ou como não perceber que o inferno sartriano está presente no olhar de um personagem que entifica (coisifica) um outro ser humano, como no caso de A Balada de Buster Scruggs, em que o rapaz sem pernas e braços é descartado e morto porque uma galinha dá mais lucro para o patrão que ele, traduzindo também o que é próprio do mundo capitalista. Apesar de Ethan ser o irmão que se graduou em filosofia, é fácil perceber que essa disciplina também teve grande impacto sobre Joel, o que torna a leitura de ambos da experiência humana algo muito mais refinado do que o de costume.

O roteiro de A Tragédia de Macbeth segue bem de perto o texto que o bardo de Avon escreveu logo no início do século XVII. As pouquíssimas modificações do texto, porém, não fazem da obra apenas uma filmagem da peça, já tantas vezes traduzida para o cinema. Orson Welles, Akira Kurosawa, Justin Kurzel, entre outros, já demonstraram que não há limites quando se trata de um grande texto e Joel Coen, por sua vez, não está atrás. O filme é fiel ao texto de Shakespeare, mas nem por isso abandona o DNA dos Coen e o frescor de uma nova obra.
A fotografia, a cargo de Bruno Delbonnel, famoso diretor de fotografia e também formado em filosofia, é um espetáculo que deixa transparecer uma série de referências presentes no diretor. O filme é todo em preto e branco, lembrando as antigas adaptações de Shakespeare de Laurence Olivier ou o Macbeth de Orson Welles. Porém, essas referências começam a enfraquecer logo de início e percebe-se que o objetivo é buscar na fonte do expressionismo alemão e nas escalas e closes do dinamarquês Carl Dreyer a estrutura estética da obra. Grandes closes que por vezes deformam a figura de um personagem, a montagem minimalista do cenário que, ao mesmo tempo, é apresentado em conjunto com a gigantesca estrutura do Castelo de Inverness e seu enorme pé direito dão um ar de absurdo e impotência ao ser humano diante do inevitável da própria existência. Terror e desespero se juntam a ganância, ajudando a descrever muito bem as características presentes nos personagens principais.
Quando se faz a crítica de um filme como esse, é inevitável ter que contar a história da tragédia, dando destaque para aquilo que faz do filme uma obra singular.
A “Peça escocesa”, assim como o filme, começa com a conversa das três famosas bruxas da peça sobre seu próximo encontro, que será com Macbeth, e com a história contada por um sargento ferido ao rei Duncan (Brendam Gleesson). Na narrativa desse sargento, é dito que Macbeth (Denzel Washington), tano (thane, thanus) de Glamis, general e parente do rei, lutou bravamente junto com Banquo (Bertie Carvel), outro general seu amigo, e conseguiram a vitória para a Escócia e seu rei contra a aliança liderada pelo rebelde escocês McDonwald, tano de Cawdor . Adiante, Macbeth e Banquo têm um encontro com as três bruxas (Kathryn Hunter) e o primeiro é saudado por elas, primeiramente como tano de Glamis e, depois, como tano de Cawdor. A seguir, é dito que Macbeth será rei, mas que Banquo é que será o pai dos futuros reis e não Macbeth. Nesse ponto, duas coisas chamam a atenção. Primeiro, que não há um texto apenas da tragédia. Existe um texto, por exemplo, em que aparece Hécate, uma deusa grega, que é tomada como a comandante das bruxas, mas que não aparece no texto que é tido como o mais antigo. A segunda é que no filme as três bruxas são interpretadas por uma única atriz com um excelente trabalho corporal, Kathryn Hunter. Assim, as três bruxas são dadas através de uma única aparição, uma verdadeira unidade na trindade, o que remete o espectador a uma reflexão teológica.

Ao ser informado que será o novo tano de Cawdor, Macbeth resolve escrever para a esposa, Lady Macbeth (Frances McDormand), contando sua experiência mística e a profecia que afirma que será rei. Ao ler a mensagem, Lady Macbeth enche seu coração com a ganância e decide fazer um pacto com as forças mais tenebrosas para se manter firme e passar por cima de todos os obstáculos, não interessando o quão cruel possa ser. A partir daí, Lady Macbeth persuade seu esposo, que estava disposto a deixar seguir a vida, sem apressar o destino, a matar o rei e culpar os guardas que vigiavam o sono real. Macbeth comete o regicídio, culpa e mata os guardas. Com receio, ambos os filhos do rei fogem, dando a entender que foram eles que ordenaram a morte do rei. Em função disso, Macbeth é aclamado o novo rei.
Quem pensa que a sede de sangue na mais curta tragédia de Shakespeare acaba aqui está enganado. Uma série de outros assassinatos ocorrerão pelas ordens de Macbeth. O primeiro é de Banquo. O novo rei manda matar Banquo e seu filho, já que não suporta pensar que a linhagem real descenderá dele. Aqui, uma grande diferença entre o filme e a peça aparece. Lady Macbeth e seu marido, pelo que é descrito na peça, aparentam ser razoavelmente jovens, um casal que ainda poderia gerar herdeiros e, nesse caso, matar Banquo e seu descendente abriria o reinado para seus futuros filhos, não sendo portanto uma questão apenas de silenciar o general. Entretanto, no filme, há um casal bem maduro, incapaz de gerar filhos juntos, o que faz ressaltar um estranho sentimento não só de inveja. O que destrói Macbeth, no caso do filme, é ver que seu ex-amigo terá um futuro como pai de reis, apesar disso nada o afetar.
Banquo é morto, seu filho consegue escapar e Macbeth continua com sua sede de sangue. Há um novo encontro com as bruxas e Macbeth se recorda que foi dito a ele que nenhum homem nascido de uma mulher poderia lhe matar. Apesar disso, manda matar a mulher e os filhos de Macduff (Corey Hawkins) que fugiu para a Inglaterra, encontrar o primogênito do rei Duncan. Transtornado, Macduff se junta ao filho do rei e ajuda a comandar o ataque ao castelo de Macbeth com todos os soldados levando galhos de árvores, confirmando uma das profecias das bruxas que disseram que a floresta iria se mover.

Ao final, há um duelo entre Macbeth e Macduff. Contando com a vitória, Macbeth diz que não pode ser morto por nenhum homem que nasceu de uma mulher. Entretanto, Macduff revela que não nasceu de uma mulher, pois o ventre de sua mãe foi rasgado, depois de morta, para que ele nascesse. Macduff nasceu de um cadáver e, assim, consegue matar Macbeth.
Antes da morte do novo rei escocês, a ansiedade, o medo, o remorso e a culpa cobram seu preço: a paranoia e a loucura passam a dominar as vidas do casal real. Macbeth vê o fantasma de Banquo em sua comemoração, espantando a todos os seus convidados e fazendo sua mulher mentir, dizendo que era uma doença sem importância que sempre teve, para depois expulsar os convidados. Lady Macbeth também enlouquece com a culpa e os delírios do marido, o que faz com que, como é dado a entender, acabe se suicidando.
Assim como o caso do presidente Schreber, narrado por Freud, o casal Macbeth tem todas as propriedades de um caso clássico de paranoia, transtorno que juntamente com a esquizofrenia e a psicose maníaco-depressiva (bipolaridade) encerra o quadro tradicional das psicoses. Os delírios sistematizados, o domínio da interpretação, a defesa contra o real, a manutenção da força do intelecto sem deterioração, tudo isso está presente nos dois personagens centrais da peça maldita, assim como em sua mais nova versão cinematográfica. Delírios persecutórios, provenientes da culpa e da quebra do eu até então intacto, levam à saída da realidade, constituindo um mecanismo de defesa para as atrocidades perpetradas por Macbeth com o auxílio de sua própria esposa. É interessante sublinhar que Lady Macbeth, assim como Eva, é tida por muitos como a grande responsável pelos atos insanos de seu marido. Entretanto, como o filme demonstra ainda mais que a peça, ela é, verdadeiramente, a grande parceira nos atos cruéis de seu esposo. Ambos se completam, e é isso que é notado mais sensivelmente com a escolha de um casal mais velho que o comum para a realização do filme, pois, como já defendiam os sofistas, não é possível persuadir alguém de algo que já não esteja nele. Como Freud afirmou, “os paranoicos amam seus delírios como amam a si mesmos” e essa é a fonte da soberba de Macbeth.
Tudo isso, somado às grandes interpretações, na medida certa, de Denzel Washington e Frances McDormand, faz de A Tragédia de Macbeth um dos melhores filmes do ano e um forte concorrente em todas as premiações.