A poesia como gênero da liberdade

O que podemos perceber, historicamente, é uma passagem cada vez maior da poesia para uma arte narrativa da ação real dos homens

Imagem: Maria-Kitaeva
por Matheus Dato

O texto abaixo é o quarto da série Estudos de literatura para a classe trabalhadora.

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Nosso último estudo discorreu de maneira breve sobre alguns aspectos críticos da prosa. Muito embora ainda haja muito a ser dito, e de maneira melhor, avançaremos a uma ideia focada agora na literatura em verso.

A primeira coisa a se apontar sobre esta arte é que a poesia foi capaz de plasmar, historicamente, o conflito e a dinâmica de produção do mundo e da nossa sociedade em sua construção histórica. Isso não significa de maneira alguma que a prosa não tenha sido capaz também de, efetivamente, retratar diversos mundos, longe disso, mas o modo como a poesia foi efetivamente apropriada de um lado pelas classes dominantes e, por outro lado, pelos subalternos e explorados, não nos deixa nenhuma dúvida de que não se pode falar em versos e poemas sem falarmos também em lutas de classes.

A começar por sua origem histórica: a poesia nasce como uma expressão de fetichização da realidade. Com isso, queremos dizer que a poesia nasceu há, aproximadamente, cinco mil anos como uma forma de narrar uma situação quase completamente desconhecida pelo homem. Do confronto cotidiano com a natureza ao seu redor, mediado pelo trabalho humano, e com o surgimento de classes sociais que visavam explicitamente exercer poder sobre o outro de maneira sofisticada, surge a ideia de que há no universo uma razão imutável, uma ordem natural que justifica que as coisas sejam como são.

Mitos de criação

O exemplo mais conhecido desta afirmação é que as raízes daquilo que hoje consideramos “arte poética” são, essencialmente, narrativas divinas da criação e manutenção do mundo. O Épico de Gilgamesh (3.000 A.C), a Teogonia (700 A.C) e o Mahabaratha (400 A.C) surgiram em contextos distintos, com povos distintos, mas expressaram de maneira magistral a mesma noção intrínseca: há uma natureza humana que está submetida ao querer de algo que se encontra fora do próprio homem. A religião se fundamenta dinamicamente com o Estado como as superestruturas principais de dominação de classe a partir da criação daquilo que é usualmente entendido como “civilização”; naturalmente, a poesia é apropriada para a finalidade de emular em meio a todo o povo uma arte que reflete em sua linguagem e seu discurso a ideia dominante.

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Este mundo fechado, que apresentamos aqui como modelo, sempre foi atravessado por brutais contradições no campo da poesia, haja visto que os explorados não são espectadores da história, mas seu principal agente. O surgimento da canção popular, a poesia cantada que acompanhava o ato humano de trabalhar, refletia a noção de um homem que começava a tomar consciência de uma situação em seu mundo real bastante diferente das narrativas dos grandes poetas dos templos e cortes. O primeiro realismo surge com o homem ligado aos seus pares e companheiros, e não na mente do poeta.

Não podemos afirmar, contudo, que a poesia imediatamente passa a ser utilizada como meio de contestação da ordem vigente. O que é preciso compreender sobre a transição da antiguidade à modernidade é que nunca houve uma revolução concreta que tenha subvertido o caráter social da poesia. O que podemos perceber, historicamente, é uma passagem cada vez maior da poesia para uma arte narrativa da ação real dos homens até o momento em que nascem as revoluções burguesas do séc. XVIII.

Razão e crítica

Este é o ponto vital para a arte poética como uma relação livre de um núcleo metafísico. A influência burguesa na literatura traz em seu bojo uma ruptura real no campo das artes; a obra de Voltaire (1694 – 1778) na França, a influência do marquês de Pombal no campo do conhecimento em Portugal e em todo o mundo ibérico e, na base estrutural destas mudanças, a quebra dos ciclos econômicos agrários nas colônias alinhados com a nova ordem burguesa configuraram de maneira muito distinta a face da poesia para o mundo. 

O que podemos perceber é que a escrita em verso adquire tons mais racionais e críticos, destinados não somente a declarar algo sobre a natureza e a sociedade, mas também a opinar concretamente sobre estes assuntos, desde uma posição de classe, obviamente.

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A arte poética, dando provas de seu enorme dinamismo, enfrentou fluxos e refluxos nesta tendência de busca do real. Escolas como o romantismo e o neoclassicismo, que serão abordadas posteriormente nesta série, representaram retornos progressivos à sentimentalidade e ao entendimento ideal do mundo que nos cerca. De algum modo, a poesia destas épocas se consolidam como “gritos desesperados da alma oprimida”, parafraseando o velho Marx.

A conformação de uma nova sociedade capitalista, com a passagem das sucessivas formas de dominação de uma classe proprietária de bens tão maravilhosos e aterrorizantes como máquinas e fábricas, criou não somente uma nova classe de trabalhadores mas também um novo modo de se pensar e produzir a arte de seu mundo operário. As canções imortalizadas pelas revoluções, como a “Canção da Juventude Inquieta”, “A Internacional”, “Tu, caíste na luta, como vítima fatal” e outros congêneres são a prova de uma nova beleza e uma nova estética proletárias.

Fenômenos muito mais contemporâneos como a poesia concreta, o surrealismo e outras escolas são demonstrativos das pressões inerentes à luta de classes na arte e na ideologia. A sucessão do novo em substituição ao velho, a crise daquilo que é novo e, repetidamente, a substituição por outras formas concretiza na dialética a poesia e torna a poesia mais dialética.

Poder operário

A instituição do poder operário por meio das experiências socialistas representou, após 1917, uma hegemonia cultural da classe trabalhadora nunca antes verificada. Todo o mundo navegava entre as ondas furiosas do imperialismo cultural do ocidente e as tempestades lançadas pelas vanguardas da poesia russa, o proletkult, a arte disruptiva de 1968 e a revolução cultural chinesa. No Brasil, escritores e escritoras como Drummond de Andrade, Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Carolina Maria de Jesus escancararam no verso a face da pobreza e miséria de um país dominado e a beleza de uma vida que poderá ser alcançada pela labuta.

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Mesmo na contemporaneidade, embora a crise orgânica do capitalismo monopolista arraste consigo uma crise estética e intelectual sem precedentes, o desespero não foi capaz de varrer a poesia da mente. O lirismo sobrevive na tecnologia e as formas concretas parecem ter encontrado um veículo própria na distopia de uma sociedade hiperdesenvolvida contraposta à condições de vida cada vez mais atrasadas. 

Se a crítica da literatura é, como pretendia o grande György Lukács, a busca de uma narrativa da ação real no mundo, a poesia conseguiu se colocar à frente da prosa na missão de acompanhar as dinâmicas do mundo. 

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O que isso nos diz sobre a arte poética, portanto, e por que razão a chamamos de “gênero da liberdade”? Ora, se dissemos nestes estudos exaustivamente que o engessamento das formas tem sido um elemento causador da própria imobilização da arte, é precisamente na poesia que verificamos um modo de escrita livre, que facilmente toma o rumo dos pensamentos e ações daqueles que escrevem, que consegue diminuir as fronteiras entre as mais diversas formas de expressão, desde a pintura até o cinema. A poesia foi o instrumento de Maiakovsky para cantar a revolução proletária e a arma do fascismo para provocar o terror de sua presença; foi a profissão radical de fé dos homens na existência e na inexistência do divino. Foi tão firme e perfeccionista como nos poemas parnasianos e tão espontânea e caótica como no dadaísmo. O mundo está sedento por aqueles que imaginem o futuro a construir, e mais do que nunca a classe trabalhadora disputa nas consciências a chama de um mundo novo que (por que não?) é poético como um espectro a rondar o mundo. 

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