O Iphan e os destruidores da memória

por Danilo Matoso

O governo Bolsonaro está desmontando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “Destruição”, “desmonte”, “entrega”, “abandono” se tornaram palavras comuns para descrever políticas públicas nacionais nos últimos anos, sobretudo depois do golpe de Estado de 2016. Destruir o Estado é o feijão com arroz dos golpistas. E, bem, estão destruindo o octogenário Iphan: mais de 70% do orçamento do órgão foi cortado no último ano, grande parte dos cargos-chave estão sendo ocupados por “amigos do presidente” sem qualquer qualificação ou experiência na área de Patrimônio Cultural: pastores, turismólogos, youtubers. Vale tudo para desidratar por inércia o Instituto responsável pela tutela das cidades coloniais de Minas, de Brasília, dos Sete Povos das Missões, dos centros históricos de São Luís, Belém, Salvador, Rio de Janeiro, da Capoeira, do Bumba meu Boi, e diversos outros bens materiais e imateriais.

Mas tal política traz suas contradições. Afinal, como poderia um político conservador, supostamente um “patriota” (ou pelo menos representando os tais patriotas), arauto dos valores e das tradições de seu povo, prescindir de disputar a hegemonia cultural no campo do Patrimônio?

A institucionalização das políticas federais de Patrimônio no Brasil, na década de 1930, está intimamente ligada a um projeto de construção de identidade nacional de viés conservador. Alguns de seus primeiros passos, por exemplo, foram dados pelo integralista Gustavo Barroso, à frente do Museu Histórico Nacional. A ideia de promoção do mito nacionalista esteve na base da política do também conservador Francisco Campos – ministro da Educação e Saúde Pública de Vargas. O grupo mineiro liderado por seu sucessor, Gustavo Capanema, tinha gosto artístico mais eclético, mas viés político também conservador.

A criação do Iphan

Quando Rodrigo Melo Franco de Andrade criou o Iphan em 1937, sua prioridade era salvaguardar o patrimônio do período colonial por uma deliberada escolha pela herança luso-brasileira como a expressão artística legítima de nosso país: a síntese arquetípica da formação da identidade nacional. Era uma identidade nacional bastante específica, voltando-se ao “velho portuga” e dando as costas aos imigrantes espanhóis, italianos, alemães ou sírios que haviam acorrido ao país na virada do século anterior – até porque havia muito operário e esquerdista entre eles.

É evidente que, em certa medida, o retorno a um passado colonial idealizado, repleno de “bons selvagens” geniais como o Aleijadinho, ou de intrépidos conquistadores como os bandeirantes, era um empreendimento análogo ao que os regimes fascistas operavam na Europa. Mussolini, na Itália, resgatava o glorioso passado imperial romano, associando-o ao seu regime. Hitler, na Alemanha, exaltava a cultura camponesa germânica. Salazar, em Portugal, retomava a herança medieval que precedera a era dos descobrimentos.

A política de patrimônio do PT

A política de Patrimônio Nacional é parte da disputa pela hegemonia cultural: preserva-se o que é valorado. É valorado o que serve a um propósito político e o que corresponde ao gosto de determinado grupo de poder. Está em jogo o caráter vigente da identidade nacional, ou pelo menos um importante fator de pressão nessa disputa. Os governos do PT, por exemplo, souberam compreender tal papel. Por meio do Programa Monumenta ou do PAC Cidades Históricas fizeram das políticas de Patrimônio um instrumento de investimento federal com grande capilaridade em território nacional.

Obras de preservação não são convencionais. Além da mão-de-obra e dos materiais tradicionais é necessário o emprego de pessoal especializado para tratar as edificações e obras de arte com o devido cuidado. É necessário ainda conhecimento sobre técnicas e materiais hoje em desuso, além de criterioso controle por técnicos especializados. Investir em Patrimônio tem assim um efeito multiplicador na economia maior que o investimento em construção civil convencional: forma-se mão de obra qualificada, com melhor remuneração, demanda-se a expansão da rede de formação desses profissionais. Investir no patrimônio, portanto, era de certa forma uma política de incentivo ao desenvolvimento econômico e – por que não dizer, social.

Vale relembrar que um viés político progressista também permitiu a ampliação, nas últimas décadas, do próprio conceito de patrimônio, que passou a abarcar os saberes, os fazeres, os ritos de nosso povo. A partir de 2000, o campo do Patrimônio veria significativa institucionalização do Patrimônio Imaterial, com a promulgação de leis e criação de órgãos especializados no tema.

“Só o amor explica o Brasil”

Era de se esperar de um governo conservador e de extrema-direita, como o de Bolsonaro, uma contundente política de patrimônio de modo a produzir uma brutal hegemonia cultural – à semelhança do operado por regimes nazistas anteriores. De fato, em alguns momentos, figuras como o Ministro Ernesto Araújo ou o Secretário da Cultura Roberto Alvim esboçariam algum plano de “depuração cultural” análogo ao dessas outras eras.

Erraram a mão feio.

O diplomata Araújo, estreou em grande estilo em janeiro de 2019. Disse que “é só o amor que explica o Brasil”, prosseguindo em tupi-guarani: “Anuê Jaci, etinisemba-ê / Indê irú manunhê / Yara rekô embobeuká tupirã / Rekôku ya subí / Embobeuká tupirabê / Nge membyrá”. Entendeu? Não se preocupe. Ninguém entendeu. Bolsonaro também não, e se entendesse talvez não concordasse, já que instalou um certo “gabinete do ódio” no Palácio do Planalto.

Ricardo Alvim, após meia-dúzia de impropérios dirigidos a artistas do calibre de Chico Buarque ou Fernanda Montenegro, passou meio-quilo de gomalina no cabelo, vestiu um terno cinza e recitou Goebbels na televisão. Pegou mal e ele acabou sendo exonerado em seguida.

A deputada federal bolsonarista Bia Kicis (PSL/DF), procuradora aposentada de alta estirpe aliada de primeira hora ao Escola sem Partido e congêneres, esteve presente num cosmopolita Simpósio Conservador de Ribeirão Preto em 2019. Ali, embevecida com a regência do maestro Dante Mantovani da Orquestra Jovem de Paraguaçu Paulista, a parlamentar exultante publicaria no Twitter: “no Simpósio conservador é assim. Não tem funk nem axé. Tem alta cultura. Vive la haute culture!”. Eles parecem tentar, mas até aqui ficaram só na caricatura e na cultura prêt-à-porter.

Permanece como slogan do Governo Bolsonaro o bordão “Brasil acima de tudo” – nada menos que a transposição direta da palavra de ordem nazista Deutschland über Alles [Alemanha acima de tudo]. A realidade porém é que não convenceram sequer Bolsonaro da importância da área da Cultura para sua própria política.

O presidente não dá mostras de saber o que é Cultura, política cultural, e muito menos Patrimônio Cultural. Em dezembro de 2019, num evento da Bancada Evangélica, teria se limitado a comentar, a pedido de Luciano Hang, que “ali na cultura tem um tal de Iphan, que tem o poder de embargar obras em qualquer lugar do Brasil”.

Extinção do MinC

Michel Temer já tentara extinguir de uma canetada o Ministério da Cultura em sua posse ainda como interino em 2016. Foi criada uma Secretaria Especial de Patrimônio Histórico junto à Presidência da República que tornava incerto o futuro do Iphan. Teria o mesmo destino do Ministério? À época, num dos mais combativos movimentos de luta contra o golpe, o OcupaMinc tomou as ruas e os órgãos do Ministério no país inteiro. A direita retrocedeu, o MinC foi mantido e com ele o Iphan.

Bolsonaro também extingiu o MinC de saída, e agora praticamente sem resistência popular. Deixou a presidente do Iphan Kátia Bogéa “de molho”, enquanto nomeava cabos eleitorais do PSL para as Superintendências Regionais do órgão. A sociedade protestou, mas em dezembro acabaria por exonerá-la. Durante a pandemia, porém, retomou-se a política de aparelhamento – ou desmonte por inépcia – do órgão, coroada pela nomeação da esposa de um de seus seguranças pessoais para a presidência do Iphan: formada em hotelaria, a técnica do Ministério do Turismo Larissa Dutra foi nomeada para a presidência do órgão na última semana em meio a uma nova saraivada de notas de repúdio da sociedade civil. A principal, assinada por mais de 40 entidades e autoridades da área, denunciando que a jovem presidente é uma “pessoa sem a necessária formação e experiência profissional” e classificando a nomeação como uma “flagrante ação de deslegitimação do saber científico e técnico que sempre caracterizou a instituição”.

Só teríamos a comemorar a inépcia do conservadorismo. Até aqui, foram incapazes de elaborar um projeto qualquer de país. Não há uma política cultural conservadora em andamento nem algo que se aproxime das monstruosidades urbanísticas de Mussolini e Hitler. Em seu lugar, porém, vige agenda destrutiva e genocida de virulência talvez inédita em nossa República.

Nada de construção de identidade nacional – e que esperar de um “patriota” que bate continência para a bandeira dos Estados Unidos? Nada de cultura estatal hegemônica. Aliás, nada de cultura estatal e ponto. Basta uma mentira qualquer no WhatsApp, um tweet, um factoide grotesco. Aparentemente, é bem mais fácil ser governante fascista hoje que na década de 1930. O projeto de país dos fascistas do século 21 não vai além do próximo tweet.

Afora isso, é só uma destruição total de tudo o que se construiu até aqui, bem mais agressiva e radical que aquela promovida pelos seus antecessores da década de 1930. O governo Bolsonaro não quer disputar a memória, optou por simplesmente destruir a memória. Talvez considerem que o tal de Iphan não fará falta porque simplesmente não haverá nem país nem patrimônio algum quando terminarem seu serviço por aqui.

9 comentários

  1. Essa Larissa Dutra Peixoto realmente é Turismóloga que não tem nenhum reconhecimento profissional pela ABBTUR – Associação Brasileira de Turismólogas e Profissionais do Turismo, entidade que representa e defende os interesses da categoria dos Turismólogos e Profissionais do Turismo.

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  2. Porque repúdio?? Os Bacharéis em Turismo são tão capacitados, quanto os outros profissionais que lidam com o patrimônio histórico. Inclusive os Turismológos estudam gestão de negócios, algo que as outras profissões da área não possuem.

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